01/11/2015

Apenas uma sombra.


Perdido. Talvez seja essa a melhor definição para o estado actual dele. Desconhece como chegou naquele antro de tristeza cinzenta. Desconhece se é dia ou de noite: a pequena luz que ilumina o espaço não calendariza o tempo. Só o desprezo pela sua existência grita na intermitência daquela parca luz.
Se tem um nome, não o sabe. Se tem pai ou mãe é algo que também não deve passar-lhe pela cabeça. Ou se calhar passa-lhe, sabe-se lá. É complicado compreender um bicho; torna-se mais fácil desapropriá-lo, na nossa mente, de quaisquer emoções que ele possa sentir. Deste modo o desapego e a despreocupação tornam-se mais fáceis para o nosso coração.
Os seus olhos não discernem o quanto ele já cresceu e o quanto ele é renegado pelo mundo lá fora. Melhor assim, talvez. Melhor ignorar que do outro lado da parede ninguém questiona-se sobre ele.
Se ele está bem.
Se ele precisa de alguém.
Se ele precisa de ser retirado daquele abraço gélido e sentir o cheiro da liberdade e o calor do amor puro. Embrulhar-se na erva fresca e respirar o sol.
Ninguém questiona.
E ele não sabe que ninguém questiona.
Melhor assim. Talvez.
Os seus olhos somente vislumbram os seus companheiros, igualmente encafuados em jaulas como a dele. O toque do metal é medúsico, ao ponto de trespassar a pele e petrificar os ossos. A fadiga emocional agita-os, tornando o choro e o lamento num silêncio ensurdecedor. Uma vez por outra aparecem os homens para deixar-lhes alimento, mas nem o mínimo gesto de carinho têm para com eles. Nem a mais pequena atenção. Simplesmente atiram com a comida aleatoriamente e nem nos olhos os encaram. São só bichos. Desconsiderá-los é a máxima consideração que têm por eles.
Uma vez por outra, também, repara que os mesmos homens retiram alguns dos bichos das suas jaulas e levam-nos pelo corredor a uma outra sala, para depois regressarem sem eles. É uma estranheza que arrepia-lhe a pele e eriça-lhe o pêlo: uma incógnita que fica por desvendar eternamente e que perturba-o.
Ele repara que aqueles que encontram-se mais tempo naquela sala é que são os escolhidos para caminharem pelo corredor até serem engolidos pelo desconhecido. Provavelmente alguém veio buscá-los para oferecer-lhes a oportunidade que merecem: a liberdade, que é tão arbitrariamente pintada nas suas expectativas de bicho. A vontade de sentir o sereno Zéfiro que não entra naquele Hades sufocante e tenebroso. E a espera, a tremenda espera sem saber o seu destino. É uma ânsia que mutila-o.
Como se disse, ele desconhece se é de dia ou de noite. Conceitos temporais como dias, semanas, meses ou anos não existem para ele.
Mas existem para nós.
Passam, portanto, cerca de quatro meses. A rotina é, finalmente, quebrada: um homem retira-o do seu pequeno espaço e leva-o pelo tal corredor misterioso. Os tons neutros do chão inquietam-no, deixando-o num pânico descomunal. Algo não está certo e ele sente-o. Sente que, afinal, se sair daquela ala, não será a liberdade a recebê-lo de braços abertos: se o fosse, não ouviria o berreiro infernal que aproxima-se cada vez mais,
num ritmo aterrorizante
e descompassado.
Ele tenta soltar-se das amarras que foram-lhe colocadas, mas em vão. As mãos que só olham para ele como uma coisa, e não como alguém, apertam-lhe a alma e obrigam-no a prosseguir. A agonia que continua a ouvir começa a sussurrar-lhe ao ouvido, dizendo-lhe que não há escapatória possível.
Ninguém quis saber dele. Ninguém lembrou-se de pensar nele, mesmo sem saber da sua existência. Ninguém pensou em salvá-lo. Agora, ele encontra-se no mesmo estado em que estava quando chegou à sala que acompanhou-o durante aquele tempo todo.
Perdido.
Assim que ele chega ao outro lado, o seu destino está irreversivelmente registado. As suas súplicas chorosas ecoam pelo ar até um único golpe silenciá-lo definitivamente. Aos poucos, numa convulsão abismal, a sua vida abandona o corpo. Os seus pequenos olhos fecham-se, derramando a última lágrima que é olvidada por aqueles que arrastaram-no até à morte. A compaixão, aqui, é proibida: se ninguém deu-se ao trabalho de pensar nele, muito menos aqueles homens têm de fazê-lo. Afinal, é apenas um bicho.
Apenas uma sombra.


Apenas um porco
um bezerro
uma raposa
um cão.



Não importa o animal que pensou. Importa o sofrimento causado.
Na verdade, este texto retrata, de um modo muito amplo e suavizado, aquilo que os porcos passam na indústria pecuária: no entanto, também serve para retratar o que acontece com outros animais explorados no mesmo sector, com os animais que são aprisionados em fazendas de produção de peles e com os animais que foram abandonados e/ou atirados para os canis.
Todos os dias, a cada segundo, milhares de animais morrem porque ainda há quem os coma, quem os vista e quem os veja como lixo urbano. E, com isto, não estou a contabilizar os animais marinhos utilizados para propósitos alimentares e os que são alvo de experiências e de entretenimento.
Todos os dias, diversas almas somem dos seus corpos porque tiveram a triste sina de nascer como animais não-humanos. A cada piscar de olhos (e só tendo em conta a indústria da carne, do leite e dos ovos) setecentas e trinta e seis vidas foram ceifadas.
Cada um de nós pode fazer a sua parte ao abraçar uma filosofia de vida não-violenta.
Ao rejeitar a exploração, a tortura e a morte.
Ao rejeitar que os animais são coisas.
Cada um de nós é uma esperança para esses animais. Essa esperança só precisa de ser despertada.
Desperte. Viva e deixe viver.


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