20/06/2015

Sinceramente, basta.

 
Há proposições que, francamente, não sei como se formam na cabeça de algumas pessoas: é que são tão, mas tão incongruentes, e simultaneamente tão apoiadas e aplaudidas, que fico demasiado perplexa para conseguir pensar se hei-de pensar.
A minha confusão deveu-se com uma notícia que relatava o apelo da modelo Sara Sampaio para que o hediondo festival Yulin, na China, findasse. O evento referido passa-se anualmente e sacrifica, de forma indescritivelmente brutal, mais de dez mil cães. Obviamente que apoio abertamente a interrupção definitiva desta barbaridade tamanha, pelo que peço que se assine esta petição (e esta também); todavia, ocorreu uma troca acesa nos comentários dessa notícia que deixou-me um tanto quanto desorientada: a conversa entre os internautas aqueceu e, de repente, uma discussão sobre a diferença entre um cão e uma vaca, de que o primeiro não é para comer e a segunda é, que matar o cão não é o mesmo que matar a vaca, entre outros argumentos que reflectem bem a compaixão selectiva que ainda mina a mentalidade da maioria da população, estendeu-se compulsivamente.



Pensei bastante antes de escrever este texto, porque várias pessoas que lêem o meu blogue ainda comem animais e também devem pensar deste modo; mas como criei precisamente este espaço para desmantelar tais considerações que são, irrefutavelmente, especistas, decidi fazê-lo. Quero deixar, de forma clara e distinta, que a minha pretensão é esclarecer e colocar as pessoas a reflectir e nunca, mas mesmo nunca, ofender. Para mim todos os animais merecem uma voz activa e é isso que vou concretizar sob a forma escrita.

Um cão e uma vaca são diferentes.
De facto são, em termos de classificação científica: o primeiro é um canídeo e a segunda faz parte da família dos bovídeos. No entanto, o que os une, bem como os restantes seres vivos que constituem o reino Animalia, é a capacidade de experimentar a dor. Todos os animais, desde cães, vacas, os restantes mamíferos, cetáceos, peixes, entre outros mais, são sencientes e susceptíveis ao sofrimento. Tanto o cão como a vaca são aptos a sentir algo e a demonstrar as suas emoções em relação a alguma coisa - e o mesmo estende-se para os restantes animais condenados à morte para a alimentação desde a alegria e o medo. Nos matadouros, as vacas (e os outros animais, como os porcos e as galinhas) apercebem-se quando estão a ser encaminhadas para o corredor da morte e entram num pânico colossal. Na indústria dos lacticínios, quando os bezerros são separados das vacas para que não bebam o leite, tanto mãe como filho choram durante dias, chamando um pelo outro em vão.

A vaca, bem como outros animais, foram concebidos para a nossa alimentação.
Admito que esta afirmação deixou-me bastante confusa: o que é, neste caso, conceber? Quando alguém refere isto, o que entenderá por um animal que foi concebido para ser usado como alimento? Quem é que decidiu isto, para além do ser humano e da sua sobreposição em relação à vida dos animais e em virtude dos seus interesses pessoais?
Se, ocidentalmente, muitos de nós continuamos a ver as vacas, os porcos, as galinhas, entre outros tantos como comida, orientalmente os cães são vistos da mesma maneira. Infelizmente, na visão dessas civilizações, também foram concebidos assim e, por muito que isto pareça frio e despojado de sentimento, se nós pensamos ter o direito de conceber determinados animais como comida, também eles têm essa mesma concepção mas com animais diferentes. Assim como não desenvolvemos laços de amor, de compaixão e de respeito para com a vaca, também eles não o fizeram com o cão. Já na Índia, por exemplo, em que a vaca é um animal sagrado e protegido, muitos de nós estranhamos esse relacionamento: o mesmo sucede-se na China em relação ao relacionamento que temos com os cães.
Posto isto, só quero referir que nenhum ser vivo foi criado para ser usado como uma finalidade; nós, numa espiral antropocêntrica, é que estipulamos assim. Se inicialmente foi pela sobrevivência (e, dito isto, é importante frisar que estou a referir-me ao Paleolítico, que sucedeu-se há milhares de anos, em que práticas como o canibalismo também eram viáveis para a continuação da sobrevivência), actualmente chega a ser uma mera questão de conformismo continuar a matar animais para comer quando já evoluímos racionalmente, moralmente, eticamente, tecnologicamente e cientificamente o suficiente, bem como já sabemos que existem milhares de alimentos de origem vegetal pelo mundo inteiro. Se não é aceitável matar um cão, seja para que razão for, também não é aceitável matar uma vaca. Ambos são seres vivos e ambos sentem o que acontece com eles, e isto é um facto.

O modo como os cães são mortos nesse festival nada tem a ver com o que se passa nos matadouros.
É desta forma que a indústria pecuária revela a sua obscura magia: o que se passa entre quatro paredes, cujos consumidores não vêem, é rapidamente abafado e não é sequer questionado. Existe um afastamento físico que tece uma barreira mental, tendo em conta que o indivíduo não presencia a vida miserável dos animais que são mortos para serem posteriormente consumidos. Já nesse festival chinês, em que os cães são selvaticamente torturados a céu aberto, vulgo, à vista de todos, obviamente o choque é enorme e as reacções antagónicas a tal sadismo não se fazem esperar para se ouvir. No entanto, quem protesta contra esse evento (e tem toda a razão em fazê-lo), potencialmente desconhece que aquilo que se passa com os animais retalhados que compra e que come não se distancia muito daquilo que o/a leva a indignar-se perante o festival Yulin. Se até nas indústrias pecuárias legais o horror é assombroso, nas ilegais é totalmente insano pensar sequer no que lá se passa. O que posso dizer, com toda a segurança, é que o que ocorre na maior parte dos matadouros consegue ser um espelho do que se passa nesse festival que admoesta selvaticamente os cães a diferença é que os matadouros envergam uma muralha que esconde tudo o que neles acontece. Se alguém tem a capacidade de compreender que os acontecimentos festivos de Yulin são condenáveis, também tem a capacidade de compreender o mesmo em relação aos animais confinados e torturados na indústria pecuária.


Imagem 1 | Dana Ellyn
Imagem 2 | Vegan Sidekick