04/10/2017

«Mas nem peixe?»


O silêncio também grita nós é que não o ouvimos

Temos um pensamento bastante cartesiano quando procuramos justificar a captura, morte e consumo dos peixes: geralmente, comentamos que estes não sentem nada e que os seus movimentos são puramente mecânicos. E que, se sentissem realmente alguma coisa
gritariam.

O som (ou, neste caso, a sua ausência) transforma-se numa arma argumentativa para nos distanciarmos ainda mais desses animais: a morte de cerca de dois triliões de peixes, por ano, passa a ser um dado insignificativo e, no máximo, um mal necessário.
Tornar o som como indicador de que alguém sente dor é redutor: nós não afirmamos que uma pessoa não é capaz de experimentar dor só porque não fala: nem nos passaria sequer pela cabeça considerar uma coisa destas.
Porque, então, aproveitamo-nos disto para desculpar a exploração que cometemos com os peixes?

Melanie Joy refere, no seu livro Why We Love Dogs, Eat Pigs and Wear Cows, que, contrariamente aos cães e gatos, não pensamos nas criaturas marinhas como animais: por consequência, descartamo-las como vidas sencientes. A falta de empatia também aumenta a nossa dessensibilização perante eles. Esta compaixão selectiva (conseguir sentir empatia por uns e, ao mesmo tempo, desprezar a vida de outros) é mais do que recorrente e facilmente presenciada até nos pormenores mais despercebidos  a total desconsideração que temos pelos peixes é só um dos inúmeros exemplos.

O que acabamos por esquecer é, precisamente, o mais importante: não é por não sentirmos empatia por um animal, ou por não o acharmos fofinho, que este torna-se insensível à dor. A sua senciência existe e independe do que nós julgamos: os peixes sentem dor, ponto. E os factos pesam mais do que meros juízos de valor.

Esta questão sobre a senciência dos peixes e outros animais marinhos foi cientificamente debatida durante longas décadas. As pesquisas mais recentes revelam, no entanto, que os peixes são sencientes e que, por isso, conseguem experimentar dor. Um dos estudos mais relevantes sobre o assunto pertencem a Jonathan Balcombe: o etólogo frisa que estes animais possuem uma consciência própria e que são capazes de sentir dor, prazer, de comunicar com os outros peixes e, até mesmo, de reconhecer rostos humanos. 

Os peixes têm, como nós, um sistema nervoso complexo e possuem nociceptores. Os nociceptores são receptores sensoriais que enviam sinais causadores da percepção de dor como resposta a um estímulo gerador de dano. Isso implica que os animais tenham de sentir algo para poderem responder a esses estímulos. Tais características mostram que estes animais possuem uma consciência.

Em O Livro da Consciência, António Damásio alega que a senciência leva ao desenvolvimento de um eu organizado, que por sua vez pode desenvolver-se em mentes conscientes mais complexas. Nessa categoria insere os animais não-humanos, onde os peixes estão incluídos. Também assevera que um ser torna-se senciente numa forma primitiva quando o cérebro começa a gerar sentimentos primordiais.

Um estado de senciência primitiva significa que o organismo vivo tem capacidade de experimentar sensações básicas, como a dor, pelo que os animais desprovidos de uma consciência mais complexa, como a consciência de si, continuam com propriedades despoletadoras de sensações como o sofrimento. Por outras palavras, não é o nível de consciência que define a capacidade que alguém tem para sentir dor, e sim a senciência: precisamente por essas razões é que sabemos que os bebés conseguem experimentar várias sensações, apesar de não terem consciência de si próprios. Também sabemos que alguém com perda definitiva de memória não deixa, por isso, de ser senciente  e que alguém com síndrome do encarceramento continua detentora dessas propriedades que a levam a sentir dor, apesar de não conseguir comunicá-lo.

O que para eles é estar fora de água, para nós é estar dentro dela

Apesar de não emitirem sons, a linguagem corporal no caso dos peixes é um indício bem visível de que estes estão a passar por um momento de agonia. O violento escarafunchar que fazem, quando são puxados para fora de água, não acontece por acaso.



De acordo com o raciocínio deste senhor (que, como bom pescador que é, vai obviamente defender que os peixes são primos direitos dos rabanetes), uma prova de que os peixes não sentem dor é que estes dão luta quando estão a ser içados para fora de água (e depois dá o exemplo do seu gato, que se machucou com um anzol e que não ficou a convulsionar como os peixes, blá blá blá). Se sentissem dor não reagiam efusivamente, visto que ao fazerem-no acabam por ferir-se ainda mais com o anzol  algo que evitariam se sofressem.

O simpático senhor pescador filósofo, com esta alegação, está a rejeitar uma característica comum de todos os animais: o instinto pela sobrevivência. Se os peixes retaliam afincadamente é porque querem viver. Os animais selvagens, quando apanhados em armadilhas de caça, também fazem de tudo para escapar, mesmo que isso implique magoarem-se ainda mais: muitos deles chegam a auto-mutilar o membro aprisionado para conseguirem fugir. Até no meio natural (vulgo, sem influência humana), os animais sacrificam o seu bem-estar se isso lhes valer a vida: as presas não sossegam de forma alguma quando estão a ser encurraladas pelos predadores, preferindo entregar o corpo a escoriações mais profundas se isso permitir-lhes uma hipótese de fuga.
Fora de água, os peixes mexem-se freneticamente porque não estão a conseguir respirar: se o nosso comentador fosse atirado para um lago e não o deixassem sair de lá, com certeza que também ia rebolar que nem um doido mal sentisse o ar a esgotar-se-lhe. Dever-se-á pensar, então, que está tudo bem e que, como está a esbracejar em vez de deixar-se afogar placidamente, nada de anormal está a ocorrer com ele? Porque foi esta a lógica da batata que ele expôs em relação aos peixes.

Também é importante acrescentar que os peixes, tal como nós, têm neurotransmissores, que são substâncias químicas. Uma dessas substâncias, a adrenalina, é libertada como resposta ao stress que os peixes sentem quando se encontram em perigo, preparando-os para o esforço físico.

Ter memória de peixe


Como foi referido acima, os peixes têm uma capacidade de memória impressionante: é através dela que aprendem a evitar situações causadoras de sofrimento e de mal-estar. Joan Dunayer, num artigo para o Les Cahiers antispécistes, faz referência a uma pesquisa realizada por R.O. Anderson, sobre as percas que aprendem a evitar anzóis de pesca quando assistem outros peixes a serem capturados.

Também Culum Brown, um especialista de peixes da Universidade de Macquarie, escreveu um breve ensaio que aborda a verdade inconveniente que a senciência dos peixes representa: em resposta a Brian Key(1), Culum sublinha que somente três dos trinta cientistas que lhe responderam é que concordaram com ele. Dois dos trinta cientistas divergentes são António e Hanna Damásio (o primeiro já citado), completamente desfavoráveis à exclusividade do córtex cerebral como criador de sensações e destacando as evidências anatómicas e fisiológicas das estruturas subcorticais (e até mesmo os sistemas nervosos entérico e periférico), que desempenham um papel importante para a experiência das sensações. Brown também reforçou que os peixes são mais inteligentes do que aparentam, exibindo comportamentos que podem ser vistos em primatas, como a construção de estruturas complexas e o uso de ferramentas.

Pesca e consumo de peixe: problemas éticos, ambientais e de saúde

A senciência dos peixes catapulta, deste modo, as nossas acções para uma esfera moral: a pesca deixa de ser um desporto despojado de crueldade, assim como comê-los levanta questões éticas. Devemos reflectir se é correcto continuar com hábitos que implicam a morte de seres que sofrem indubitavelmente, ponderando seriamente numa mudança dos nossos costumes nesse aspecto. Ademais, existem outros sérios obstáculos à legitimidade da captura e consumo de criaturas marinhas. Um é de cariz ambiental, denunciador da terrível insustentabilidade da indústria piscatória:

• A pesca por arrasto, uma das mais comuns e praticadas, chega a descartar 90% dos animais capturados. Alguns ficam gravemente feridos, sem grandes hipóteses de sobrevivência quando são lançados novamente ao mar, e a maioria acaba mesmo por morrer. Desses animais descartáveis estão incluídos golfinhos, raias, tubarões e outros peixes.
• As aves também são vítimas da nossa vontade de comer peixe: o palangre(2) é responsável por mais de 300 000 mortes por ano, contribuindo para a ameaça de vinte e seis espécies de aves marinhas, sendo que vinte e três são de albatrozes.

Por causa da pesca:

• 300 000 cetáceos são mortos todos os anos;
• 89% dos tubarões-martelo desapareceram do Atlântico nordeste nas últimas duas décadas;
• Ao todo, mais de vinte e sete milhões de toneladas de animais marinhos são descartadas por ano.

O outro problema é sobre a nossa própria saúde, visto que a quantidade de químicos presentes nos corpos destes animais é motivo mais do que suficiente para reconsiderar o consumo dos mesmos. Substâncias desde mercúrio, dioxinas e bifenilos policlorados são comummente encontradas nos peixes.


Ninguém merece sofrer (e muito menos morrer) por causa de escolhas que podem muito bem ser redefinidas e que nada alteram o nosso bem-estar. Considere deixar os animais fora do seu prato e abrace um estilo de vida menos violento.

--------------------------------------------------------------

Referências úteis:

Balcombe, Jonathan (2016) Cognitive evidence of fish sentience
Damásio, António & Damásio, Hanna (2016) Pain and other feelings in humans and animals
Braithwaite, Victoria A. & Droege, Paula (2016) Why human pain can’t tell us whether fish feel pain Animal Sentience
Presença de mercúrio, dioxinas e bifenilos policlorados nos peixes
(1) Brian Key posicionou-se a favor da insensibilidade destes animais, argumentando que estes não têm um processamento neural necessário para sentirem dor. Também argumentou que a arquitectura do cérebro humano é obrigatória para sentir dor, uma abordagem que transporta o córtex humano para o centro da explicação da mesma. Apesar de ter defendido esta proposição, acabou depois por rejeitá-la.

(2) O palangre (longlining em inglês) é um tipo de pesca constituído por uma linha principal, forte e comprida, da qual dependem linhas secundárias.

--------------------------------------------------------------

Imagem 1: PETA
Imagem 2 & 3: Thinkstock
Gif: BuzzFeed